O TREM QUE NÃO ERA
José
Newton Garcia de Araújo
Preâmbulo
Final dos anos 50. Eram frias as noites
no seminário. Frias as horas, frio o silêncio quase medieval, dezenas de
crianças-adolescentes entrando naquele imenso dormitório. Para nós que
despertáramos às cinco da manhã, o cansaço era tanto que nem os temores da
noite, da morte, do inferno, conseguiam dar insônia. A gente até desconfiava, a
ameaça do fogo eterno era um sutil cuidado do diretor espiritual para inibir
nossas tentações debaixo dos cobertores. Dentes escovados, cada qual fazendo a
própria cama - já se havia rezado na capela, o jantar saíra às seis, era
proibido conversar, todos se recolhendo, até que o bedel apagava a luz. Cada
vez menos ruídos. Era naqueles minutos próximos das nove e meia, meses longe de
nossas famílias, a saudade adormecendo nossa fome, que o trem apitava lá no
fundo da cidade.
Será que vou ter aqueles sonhos
proibidos? Bem, se acontecer, é coisa da natureza, é o corpo poluindo o pijama
e o sonho. O que restava de gozo era só a lembrança, quando a gente acordava, reconstruindo
os detalhes do pecado involuntário.
- Pecado não, meu filho, você só
pecará a posteriori, se contar para
algum colega, aquele risinho disfarçado, imagine o tanto de gente também
querendo sonhar.
- Ainda bem, padre, que não
pequei. Não vou contar pra ninguém.

Pois era para nos dormir que a
maria-fumaça uivava, recortando nosso desamparo infanto-juvenil, os pensamentos
reprimidos e traspassados de culpa. Seus apitos se anunciavam ao chegar e,
despejados passageiros e cargas, ao sair. Partia lentamente, aos poucos
aumentando a marcha, até alcançar a correria máxima de um trem a vapor. Alguns
apitos ainda, o ruído ritmado ia se perdendo escuro adentro, nos confins de
montanhas, ali onde o ouvido nada mais alcançava. Nem sei se aquelas imagens
sonoras provocavam tristeza, angústia ou mera indiferença gostosa. Era o trem,
ele bastava. O trem nosso de cada noite.
Desfecho
Ano da graça de 2011. Hora e meia
atrás, estava eu lendo, ao clarão de velas. A tempestade, ainda forte, apagara
todas as luzes do bairro. Súbito, a rua me trouxe um ruído. Longínquo no tempo,
muito próximo no entorno. Sem me dar conta, transportei-me aos escuros do
grande dormitório e das tentações. Sim senhor, era o ruído daquele trem. Mas
como? Não há trem nas redondezas, os prédios expulsaram, das almas e das vias,
todos os trilhos e dormentes angústias. Alucinação? Que importa?, eu já estava
lá nas noites do seminário, o trem chacoalhando nossas indecisões entre a graça
e o pecado. Fiquei meio tonto. O remédio foi correr à janela, em pleno
temporal, para tirar o véu do ruído
lá fora. Trem? Percebi melhor: era o
barulho de um gerador de energia, no vizinho laboratório de análises clínicas.
Este nunca para, dia e noite revelando nossas doenças e velando os lucros do
dono. Fechei a janela, desencantado.
Agora que a luz voltou, também voltei
ao desencanto do computador, à frieza da razão, amanhã dou aula cedo.
Reaprendi, no entanto, a lição: como era gostoso o sacolejar do trem, de sua
passagem efêmera, aqueles segundos de fruição e conflitos interiores
embaralhados. Naquele tempo, sabíamos que ele voltaria na noite seguinte, cada
noite, toda noite. E o gerador? Pobre engenhoca, seu ruído não sabe desenhar a
solidão do maquinista, a mesmice servil dos trilhos, as montanhas e suas
perguntas, a cada curva. No grande dormitório, viajávamos nos mistérios do
trem, rumo ao desconhecido da noite e de nossos destinos. Era perigoso, mas
inevitável, entrar dentro dele. Agora, cá pra nós, motor de gerador não tem a
cadência de fumaças. Nem dá apertos no coração. Ruído de gerador só irrita, só
irrita, só irrita, só...
|